sábado, 4 de outubro de 2008

A Garrafa Vazia

Esparramada no sofá. Seu olhar tristonho e misterioso fixo no scarpin vermelho novíssimo e no vestido puído. Parecia cansaça e tão gasta quanto o vestido, mas havia algo nela de tão diferente que não era e ainda não é possível descrever. Então deixo aqui essa descrição falha e incompleta, pois ela, a mulher esparramada, é indescritível. Seu mistério é preenchido por dor. Uma dor que não se pode medir ou compreender, uma dor que muitos passam e não vêem. Quem é ela, afinal? É a mulher esparramada no sofá, a mulher do olhar triste.

O telefone tocou, uma campainha tão irritante e demorada, mas não a afetou. Ela continuou estagnada como se fosse uma bela, porém deprimente, fígura de um quadro. O telefono se cansou e parou de perturbar seu momento de reflexão. Ops, reflexão? Então ela não estava apenas jogada à devaneios, ela estava refletindo. E o que havia em sua mente? Shiu, faça silêncio e concentre-se, vamos ler essa mente...Talvez um de seus mistérios caia por terra. Talvez.

Ele se foi...Ouviu isso? Também acho que ouvi. Do que ela está falando? Vamos analisar melhor o cenário, em algum lugar deve haver uma resposta. Observe ali, na estante, onde há aquela televisão bonita de plasma, onde há aquelas esculturas esquisistas e onde...Veja! Aquilo pode ser uma pista...Uma foto. E é a mulher triste, mas não está sozinha. Quem será aquele ao lado dela? Será que é ele? Rápido, veja! Ela está se levantando, mas o que há com ela? Está tão...Não sei explicar, você sabe? Cambaleou para um lado, para o outro e foi se apoiando nos móveis até chegar na mesa da sala. Pegou o celular, escorregou os dedos e depois levou o mesmo até a orelha esquerda, acho que está ligando para alguém.

- Alô? - Disse ela. Agora não havia mistério em desvender seus sentimentos, emoções ou expressões. Era óbvio notar seu imenso esforço em não transparecer sua tristeza ou falta de força, era óbvio que queria erguer seu muro intransponível e se exibir forte e inabalável. Mas eu sei, e creio que você sabe, ela não era assim...Ela era triste.

- Oi... - Uma voz masculina disse do outro lado. Era uma voz arrastada, rouca, pesada, uma voz bonita. Se não fosse aparentemente tão triste seria bastante sensual. Creio que nenhum dos dois sabia o que falar, mas não tinham coragem de desligar, pois permaneceram em silêncio absoluto por alguns minutos. Eu não me cansei em esperar, pois estava de fato curiosa para saber o que ia acontecer finalmente, mas você se cansou? Então se prepare, por que acho que nossa espera valeu a pena.

- Por quê? - Agora já não era mais possível manter a pose de "durona". As lágrimas eram tão pesadas que corriam por seu rosto, buscando liberdade e algo sólido para se chocar e morrer. As lágrimas podem partir, mas elas não levam consigo a nossa dor...E ela chorou, chorou feito a mulher triste que era, mas a sua tristeza não diminuiu.

- Eu...Entenda...As pessoas tem que seguir sua vida pelo melhor caminho...E esse foi o meu melhor caminho. - Egoísmo puro, sentiu isso? Eu posso sentir o cheiro estranho do egoísmo no ar. Não importa que eles estão ali, nós aqui, não importa que é apenas uma voz no telefone. Eu posso sentir o egoísmo...E também sei que ele sabe que está fazendo ela sofrer, ele é a causa da mulher ser triste.

- O seu melhor caminho, então, é longe de mim? É me ver chorando, implorando, vestida para você, maquiada para você...Com os lábios carmin implorando por um último beijo, um beijo que nem ao mesmo consegui sentir... - E os lábios estavam manchados agora. Talvez restasse um pouco do vestígio do carmin, mas eram manchados, até parecia sangue. Seus cabelos negros estavam úmidos, sua pele alva estava fria e suas pernas e mãos trêmulas. O rosto desconcertado pelo choro, o nariz começando a entupir e a voz a falhar. Ela estava transbordando e não havia lugar para se apoiar. Você consegue ver isso e ficar impassível? Consegue ver um coração partido e não sentir a mínima vontade de consertá-lo ou talvez de, pelo menos, tentar? Bem, eu não consigo.

- Olha...Acho...Bem, eu acho que, no fundo...Nossos caminhos nunca foram o mesmo. Acho que a gente só queria que fossem...Mas agora eu encontrei o meu caminho, agora eu sei o que quero. Sinto muito... - Nunca, ouça bem esse conselho, nunca diga para alguém que você sabe que te ama e te quer bem, alguém que daria a vida por você, que não faz mais parte de sua vida. Sei que ele não disse isso claramente, mas deixou ela naquele estado lamentável e disse tudo isso. Seria até mais bonito se ele desligasse e deixasse ela livre, para que em paz ela voltasse a fitar os sapatos e o vestido.

- Eu só tenho mais uma coisa a dizer...Não importa qual é o seu caminho, mas o meu...O meu me leva até você. Eu posso ter sido deixada para trás, mas eu ainda me vejo ao seu lado, afagando seus cabelos e desejando seu abraço...Talvez isso seja o amor. Talvez seja essa vontade louca de te ter aqui comigo, esquecendo o quanto me magoou, quantas vezes te perdoei...Por que o que sinto é inexplicável, porém supera tudo isso. - Uma explosão de sinceridade, não é? Acho que as mulhe...Ou melhor, acho que os apaixonados são bobos. Eles não percebem o quanto se machucam para salvar o outro, porém nem sempre o outro está disposto a fazer o mesmo, mas quer saber? Um apaixonado de verdade não liga para isso, por que ele não ama e não cuida esperando retribuição, ele o faz por que gosta, faz por que lhe é necessário. E ela o perdoou...Só não sei ainda do que.

- Você deveria ter percebido antes! Quando você descobriu as coisas que fiz, achei que não fosse me perdoar, em partes fiquei contente, pois assim não caberia a mim terminar ou ter que dar satisfações do que pretendia fazer...Mas você...Eu não entendo você! Já tive outras em minha vida e isso sempre funcionou, mas por que com você não? - Provavelmente o canalha do telefone era um adúltero...Ou talvez um transformista não-assumido, um pedófilo insano ou um assassino serial...Oh, perdão. Não se deixe levar por meus intensos devaneios, continue seguindo sua própria linha de raciocínio. Se tiver alguma conclusão, por favor, me diga, talvez juntos podemos desvender essa história melhor.

- Quer mesmo saber por que não funcionou comigo? Talvez por que eu seja burra, mas eu realmente acredito que...Bem, elas não te amavam. E quem não ama o suficiente não é capaz de perdoar. Mas eu te amo...E te perdoei daquela vez, daquelas situações e seria capaz de ter perdoar quantas vezes fosse preciso...Contanto que esteja ao meu lado e esperando que eu te perdoe, eu o faria. Mas... - E ela mesma ficou comovida com o que disse. Sentiu aquelas palavras saírem gélidas de sua garganta e percebeu que agora compreendia. Agora entendia perfeitamente o por que de suas amigas parecerem tão idiotas quando estavam apaixonadas, agora ela fazia parte desse mundo. Mas o mundo não é fácil, nunca foi, não é? E acho que nem todos são afortunados nos aspectos amorosos...Eu, por exemplo, não sou muito afortunada (e sei que a culpa é minha), mas e você?

- Eu não acredito no amor. As pessoas não ama umas as outras, elas amam o que as outras podem lhe oferecer. Não tô falando de dinheiro, comodidade ou afins, claro, isso também, mas...Enquanto a outra pessoa lhe for útil, bem, ai tudo bem. Mas depois que tudo cansa...Acredito que um dos dois tem o direito de partir. E eu cansei, por isso parti. E mesmo que achasse, apenas achasse, que sentia algo mais...Eu não ficaria. Por que o amor é o consolo dos tolos e dos fracos, aqueles que não tem força o suficiente e precisam se apoiar em alguém. - Odeio admitir, mas em certo ponto eu concordo com o vilão da história. Nem todas as pessoas fazem isso, mas algumas utilizam do "amor" para se apoiar quando perdem esperanças ou qualquer coisa parecida. Eu não sei o que é mais cruel nisso tudo...Ele agir dessa forma com ela ou ela acreditar tanto em um cara como ele. Pois veja você mesmo! Olhe bem para ela...Ela é daquele tipo de mulher que os caras param na rua só para contemplar a beleza. Veja, quantas curvas impecáveis, aquele cabelo - que mesmo mal cuidado é bonito - e aqueles lábios - mesmo sem o carmin são convidativos - ela é uma mulher muito bonita, acho que até acima da média. Mas mulheres assim, ah, elas só são atraídas pelos caras errados, né? Eu estou começando a acreditar que o errado atraí o certo.

- Eu não ligo para isso...É uma pena que acha que o amor seja isso. Eu, antes de te conhecer, não acreditava em amor. Mas agora eu...Eu só não sei explicar, mas posso sentir intensamente. E com a burrice que me foi dada eu vou esperar você amadurecer e precisar de alguém para se apoiar, seja amor ou sei lá o que, mas vou esperar. Por que quero sentir para sempre essa coisa que não posso explicar. - Convicção, nossa, posso sentir a convicção dela ao dizer isso. Ela não me parece mais alguém fraca, ouça só a voz dela agora! Nem parece a mesma mulher esparramada. Será que falar com esse cara faz tão bem assim para ela? Agora estou em dúvida. Será que ela é apenas uma daquelas que gosta de se apoiar em paixões ou amores, ou é uma daqueles seres misteriosos que sabem o que é amor de verdade? Eu não sei, espero que até o final eu possa saber.

- Eu... - E ele ficou em um silêncio estranho. Acho que ela conseguiu derrubar o muro que havia entre eles e finalmente conseguido cutucar o coração frio dele. Será? Bem, eu sou uma romântica e me obriguei a acreditar nisso, talvez eu esteja enganada, mas talvez não. Espero que pelo menos um de nós esteja certo, não é? Não, não vamos apostar...Sempre perco nessas coisas. - Tenho que desligar. Tchau... - Ele demorou tanto para desligar que ela, eu e você ficamos na expectativa de ouvir mais alguma coisa, mas...Ele finalmente desligou. Acho que, assim como nós, ela percebeu que conseguiu atingí-lo, pois eu vi aquele sorrisinho triunfante nos lábios dela, você viu?

Ela respirou fundo, deixou o telefone de lado e caminhou até o sofá novamente, mas não se sentou. Abaixou-se, pegou os sapatos e o vestido e os guardou. Antes de colocar o vestido no armário ela o olhou com um sorriso saudoso nos lábios. Acho que esse vestido puído deve trazer boas lembranças, não é? Talvez de uma festa onde dançou até não conseguir mais ficar de pé, ou de um jantar romântico com aquele cara estranho do telefone...Tanto faz. Lembranças boas são algo que dão sentido e força para continuarmos seguindo em frente, não é? Uma pena que deixam o gosto da saudade...Mas vale a pena pagar esse preço. Ela saiu do quarto e caminhou em direção a cozinha. Ah não! Por um momento achei que ia pegar uma faca e dar uma de louca, credo. Ela é quase uma heróina, não é? Ela tem esperanças em algo que parece estar totalmente acabado...É, tem razão. Talvez ela seja muito boba mesmo.

Ela abriu um armário e tirou uma garrafa de dentro dele. Olha, se ela tirar a mão da frente do rótulo eu posso ver o que é e...Veja! É uma garrafa de tequila, olha lá, Jose Cuervo! Ela tem bom gosto, pelo menos. Ah, para bebidas, né, por que para homens...Melhor não comentar. Mas a garrafa estava vazia...Tão vazia quanto ela se sentia. Espere! Tem alguma coisa no lacre...Veja, parece um bilhete. Se eu apertar um pouco mais os olhos ou colocar meus óculos eu posso ler. "Do seu eterno, com amor e para muitas bebedeiras como a de hoje. Sempre seu, Adam." Nossa, senti até o estômago revirar agora. Como alguém pode dizer "eterno" e depois fazer isso? Acho que é o mesmo cara, por que parece que ela leu e releu o bilhete várias vezes. Agora ela voltou a ser, para mim, uma mulher misteriosa. Não vejo mais se está triste ou feliz. Não está mais esparramada, está de pé...Mas tão...Vazia.

Ela guardou a garrafa vazia de volta ao armário, mas foi tão cautelosa que era como se estivesse cheia, como se a guardasse para uma ocasião muito especial. Será que ela ainda acreditava no para sempre escrito no bilhete? Eu tenho as minhas dúvidas. O "eterno" é uma coisa tão relativa hoje. Cansei de ver pessoas jurando amores infindáveis e no dia seguinte demonstrarem o contrário. Eu cansei de ver o amor banalizado e as esperanças acabadas. Eu acho que não aguento mais ver garrafas vazias por aí. Mas, me diga...E você? Você também tem uma garrafa vazia que, com esperança, espera ver cheia novamente e dividí-la com aquela pessoa? Eu, particularmente, estou querendo uma garrafa cheia, de preferência uma igual a da bela mulher que vimos hoje, mas não para compartilhar com alguém, mas sim para ser entorpecida e não mais perturbada com lembranças...Cansei do gosto amargo da saudade. Bem, boa sorte com a sua garrafa.

Um comentário:

noguti's blog disse...

gostei... apesar nao ta com paciecnia pra ler td... mas as partes q eu li eu gostei!